domingo, 27 de agosto de 2017

O Meu Pião

Nicanor de Freitas Filho

            Como já contei, minha infância foi muito pobre e eu gostava muito de brincar, então tinha que usar da criatividade para obter os “brinquedos”. Papagaio, ou pipa, eu conseguia “fabricando” para os outros meninos e cobrava em folhas de papel de seda. Pra isso eu tinha, desde pequeno, um canivete que quando o meu padrinho Tarcísio me deu, arredondou a ponta dele no esmeril, para não correr risco. Mas era um ótimo canivete, que mantinha o corte sempre afiado, pois era de aço inox mesmo! Apesar de usá-lo mais para fazer as varetas de bambu, com ele eu fazia quase tudo. Além de papagaio, gostava muito de bolinha de gude, que eu ganhava jogando a valer! Jogo de botão – e naquele tempo era de botão mesmo – que a gente ganhava ou arrancava das capas das tias e primas, ou então fazia com casca de coco, raspando no cimento. Finca, aro, hélice, estilingue, carretilha e outras coisas o padrinho Tarcísio fazia para mim. Outros brinquedos, como peteca, béte (ou taco), ioiô, bilboquê os amigos tinham e nós brincávamos juntos. Uma coisa eu não conseguia ter, e gostava muito, que era o pião. Mesmo não tendo, eu sabia como brincar e pegava na mão sem jogar no chão, fazia passar por cima dos fios de eletricidade, mas não tinha o meu pião. Em casa eu improvisava, jogando um vidro, que chamávamos de “tinteiro” porque era o vidro da tinta de molhar das marcas Sucuri, Borboleta ou Trevo, pelo formato. Quem tem mais de 65 anos sabe do que eu estou falando. Eu conseguia enrolar a fieira e fazer rodar aquele vidrinho no chão. Minha avó Dinha me pedia para rodar o vidro, para todas as pessoas que a visitavam, pois ela achava aquilo de uma criatividade ímpar!
            Na casa que eu morava, que era da minha avó, tinha um quintal grande com muitas frutas. Lembro-me de abacateiro, amoreira, mangueira, figueira, goiabeira, laranjeira, araçazeiro, bananeira, pé de fruta do conde, pessegueiro e muitas outras árvores, onde brincávamos quase o dia todo. Teve um ano, que minha Tia Suça – que também morava lá – recebeu uma proposta de vender toda a colheita dos dois abacateiros e assim chegou um caminhão na porta de casa e vários homens entraram e foram apanhando os abacates e jogando dentro de um caminhão. Estragaram tudo, pois colhiam e transportavam sem o menor cuidado, ficando o quintal cheio de folhas e estragaram todo o araçazeiro e a goiabeira, que ficavam mais perto dos abacateiros, além da roseira e do pé de jasmim que ficavam no caminho para a rua. Deixaram um rastro de destruição...lamentável!
            Depois que eles foram embora, fiquei lamentando o vandalismo que fizeram nas nossas frutas. A goiabeira foi quebrada, mas deve ter sido cortada com um facão, pois ficaram lá vários galhos e o tronquinho – ela não era grande – que deveria ter cerca de 7 ou 8 cm de diâmetro e aquele pedaço cortado era bastante “cônico”. Ficou bem no meio da parte mais larga, uma ponta, que parecia mais forte, uma espécie de miolo duro. Era um pedaço de madeira curioso, pois estava com aquele miolo no meio do tronco, que afinava bastante, na parte de baixo. Quando peguei aquele pedaço de madeira, olhei-o e vi ali uma “piorra”. Se eu cortasse a parte de baixo e a afinasse um pouco mais, até fazer uma ponta, poderia tentar fazer daquela parte que ficou no meio do lado mais grosso, o suporte para os dedos apoiarem para fazê-la rodar. Examinei bem, peguei o canivete de fazer varetas e comecei a burilar aquele pedaço de madeira. Diminuí a parte central e vi que a madeira era muito dura. Passei o fio do canivete no tanque de cimento, para afiá-lo e fui tentando cortar a parte de baixo, para ficar com uns 9 ou 10 cm de comprimento, para fazer minha piorra.
            Acredito que trabalhei o resto do dia tentando afunilar aquele pedaço de tronquinho de goiabeira. Como para construir os papagaios eu tinha muita paciência para fazer e alisar as varetas, com o canivete, também ali fui trabalhando com calma. Quando fui acertar a parte de cima, acho que cortei com força e arredondou a quina que eu queria deixar. Aí eu fui arredondando, arredondando e achei que aquilo estava mais parecido com um pião do que com uma piorra. A madeira era dura, machucava meus dedos, mas eu não desistia. Todos os dias eu pegava minha peça e trabalhava um pouco nela. Eu já tinha visto que dava para fazer o formato de um pião, mas de vez em quando eu errava e tinha que diminuir um pouco o diâmetro. Sinceramente, eu não sei quanto tempo eu fiquei brincando com aquele pedaço de madeira, tentando dar-lhe uma forma de pião. Talvez mais de um mês ou até dois.
            Um dia, quando já tinha conseguido fazer a “cabeça” do pião – onde amarra a fieira – comecei a pensar como eu faria a ponteira, que geralmente é parecida com uma ponta de um prego, mas lisinha, não muito fina. Depois de quebrar a cabeça e não surgir nenhuma ideia, resolvi levar para o padrinho Tarcísio ver se colocava uma ponta no meu pião. Ele elogiou, mas disse que precisava melhorar aquilo. Mandou que eu fosse no vizinho da oficina, que era uma oficina de reparo de móveis de madeira e pedisse para o Sr. José de Souza dois pedaços de lixas, uma mais grossa e uma mais fina. Pedi ao Sr. José de Souza e ele quis saber para que. Quando mostrei-lhe o pião ele disse que ia me ajudar. Prendeu e grampeou os pedaços de lixas num toco quadrado para eu “esfregar” o pião, que segundo ele seria mais fácil de segurar para trabalhar, e, me mostrou como fazer o serviço.
            Depois de machucar toda a mão, pois, ao esfregar, escapava e pegava na lixa, principalmente a parte de trás do polegar, não desisti, fui até conseguir um formato parecido com um pião. Aí, então, levei para o padrinho Tarcísio fazer a ponta.  Ele pegou a peça, examinou, disse que precisava de uns ajustes e conseguiu melhorar o formato do pião, com as lixas. Cortou a ponta da parte de baixo e pensou em bater um prego para fazer a ponteira. Mas me disse que iria rachar a madeira. Depois de muito quebrar a cabeça, resolveu pegar a furadeira, fez um furo ali para colocar o prego, mas aí teve uma outra ideia e em vez do prego, meteu ali um parafuso de madeira, para evitar que rachasse. Depois foi para o esmeril e fez a ponteira do pião, esmerilando a cabeça do parafuso, sem deixá-la muito fina, para poder rodar normalmente no chão. Pronto! Agora tinha o “MEU PIÃO!”

            Nota: nunca rodou normalmente. Ficou meio “cambeta”. Ele era mais usado para servir de começo de brincadeira, no meio da roda... Guardei esse pião junto com meu time de botão, bolinhas de gude e uma finca, quando fui para Muzambinho, numa caixa, no fundo de um guarda-roupa. Quando voltei e fui procurar meus brinquedos todos tinham sumido...

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Nicanor de Freitas Filho