José Carlos Neves
Centenária mulher, de passado adormecido;
Quantas
histórias nele haverás vivido.
Em
quantas guerras te haverás ferido;
A quantas
gerações haverás parido. (JCN)
“Zé, eu pode ir no casa seu” (sic)? A
pergunta não era uma demonstração de preferência habitacional, pois a fazia a
todos os seus genros (por coincidência, todos Zés), mas a explicitação
do desejo de, digamos, variar de ares e ambientes familiares. Apesar dos mais
de 70 anos de Brasil, o seu português ainda tropeça a cada sentença que,
esforçadamente, tenta encadear na comunicação com genros e nora gaijins, ou com
qualquer pessoa que não tenha rosto oriental. Recatada, calada, discreta,
ensimesmada, é a matriarca centenária de um clã que honra as tradições dos
imigrantes japoneses que por aqui aportaram nas primeiras décadas do século
passado. Nessa travessia do tempo, teve todo um centenário à sua disposição
para cruzar dois milênios, dois séculos e muitas décadas. O símbolo de um
século de vida transcende, em muito, o do seu aniversário, para tornar-se
também um símbolo das relações históricas de dois grandes países como Japão e
Brasil, nas suas forças produtivas, e na capacidade humana de miscigenação e
assimilações culturais. Viveu a aventura
japonesa na invasão da China, e a Primeira Guerra Mundial, quando ainda
morava no Japão. Já no Brasil, sofreu as consequências da Segunda Guerra
Mundial - da qual seu país saiu derrotado -, seja pela perseguição imposta pela
política do governo brasileiro, alinhado, por fim, com os aliados, ou por
fanáticos patrícios que não admitiam a derrota de seu país e Imperador.
Participou do fantástico progresso conhecido pelo mundo do pós guerra, quer seja
como anônima agricultora, ou como mulher, esposa, mãe e respeitada cidadã da
comunidade nipo-brasileira. Assistiu à chegada do homem à Lua, e à
transformação cibernética da comunicação, o que dificultaria a sua própria com
este maluco e estranho mundo novo.
O meu amigo
Trasmontano, com carinhosa admiração, olha atentamente para aquela delicada
figura que lhe lembra alguma pintura de alguma gravura japonesa. Não veste o
tradicional quimono que tantas vezes a viu usar nas tradicionais danças de bom
odori. Está em trajes civis; várias roupas sobrepostas que a sua
idade já exige para um frio de inverno tropical. Seu corpo já demonstra uma
silhueta acentuadamente curvada pelo tempo e pela vida, e de uma estatura que
parece já ter sido mais alta. Deixou de pintar seu cabelo, que agora se revela
todo branco e muito mais charmoso que antes. Sua pele ainda não mostra rugas
profundas como seria de esperar em sua idade. Seu rosto é vivaz e determinado,
a contrastar com a sua frágil figura. Meu amigo olha para sua sogra, Sueko
(filha mais jovem) Shinmyo, estranho som nipônico para a sua trasmontana
origem. Neste país de predominante onomástica lusitana, muitos por certo terão
confundido seu feminino nome com algum masculino. Isso acontece quase
diariamente com a sua Eiko, pela terminação em (o). Ele já chegou
aos seus 68 anos, mas diante do centenário daquela mulher, ele se sente ainda
um jovem adulto, fascinado pelo que o seu tanto viver poderia carregar de
experiência e conhecimento.
É estranho
como duas longínquas pontas do tempo, digamos a de 1914 e a de 2014, possam
tocar-se através de um ser humano que viveu e uniu a ambas. É certo que hoje já
não é um acontecimento tão raro encontrar-se homens e mulheres com mais de um
século de existência, e com mais frequência ainda entre os orientais. Na
própria família da sogra do meu amigo, ela é a segunda das irmãs, e seu pai e
outra irmã tangenciaram o centenário com seus 99 anos. Isso faz de todos esses
longevos seres um privilegiado grupo de não apenas coadjuvantes da História,
mas eles mesmos a serem a própria História. É possível que a Sra. Sueko
- ou Obaachian (avó), como todos a tratam em família – nem sequer tenha
consciência dessa importância social e histórica. E ainda que tivesse essa
consciência, ela jamais a reivindicaria para si, pois também faz parte da História do seu tempo a sua
condição de mulher de comportamento recatado, contido e submisso, no qual o
brilho, o mérito e o mando eram reservados aos maridos, filhos, irmãos e
sogros. Mas foi nesse aparente
recolhimento, para dentro de si mesma, que a sua força e a sua
determinação ganharam importância fundamental no parimento das suas oito filhas
e um filho - não tão poucos para seu frágil corpo -, nos cuidados
e na administração doméstica, na
responsabilidade de cuidar todos os familiares no seu entorno, criar e educar
os filhos, e ainda ajudar o seu Masatoshi nos intermináveis e cansativos
trabalhos agrícolas. Socialmente, ela pode não ter crescido muito, mas, com
certeza, nos seus 100 anos de vida, ela
ajudou muito no crescimento quantitativo e qualitativo da sua família, no
desenvolvimento da comunidade japonesa e, com esta, no progresso deste país,
que sempre recebeu bem imigrantes como meu amigo e sua sogra.
Um século!
Houve tempos em que este termo só fazia sentido para designar períodos
históricos, pois só na literatura bíblica é que se encontram figuras
religiosas, transmutadas dogmaticamente em humanas, com vivência superior aos
100 anos. O meu amigo não conhece nenhum registro de tais idades alcançadas
antes do século XIX. E mesmo que os tenha havido, isso com certeza foi numa
época em que o mundo à sua volta pouco terá mudado desde o momento do
nascimento ao da morte. Ao contrário das mulheres centenárias de outros séculos,
a sogra do meu amigo, durante o seu,
pôde assistir às mais grandiosas e diversificadas alterações no
progresso humano, desde os primórdios da História. Em setembro de 2013, o Japão
ultrapassou um pouco mais de 54.000 habitantes centenários, dos quais as
mulheres ultrapassam as 48.000. Pobres homens! Por onde andará o tão propalado
sexo mais forte? Com certeza, hoje andará na aparente fragilidade do corpo da
Dona Sueko, legítima representante no Brasil da longevidade nipônica, e como de
tantas outras bravas mulheres espalhadas pelo mundo, muitas delas depois de
haverem vencido a miséria, a macheza do homem, o abandono familiar, o ato da
parir, os preconceitos sociais e profissionais, as doenças, e algumas vezes até
a morte, antes que esta as vença num último e bom combate.
O meu amigo,
para conquistar a sua sogra – afinal, não é qualquer um que tem uma sogra
centenária -, estudou um pouco de japonês há quase 50 anos atrás. Já está quase todo esquecido,
e ela tampouco evoluiu no seu português. Assim, a comunicação entre ambos
continua com a mesma dificuldade de antes. É uma pena, pois com certeza ela
teria muita História e histórias para contar. Como genro e curioso cronista do
seu tempo, ele gostaria de conhecer mais
a sua alma, e o que nela guardou durante esses 100 anos. Quem sabe, nas páginas
do seu diário secreto, algum de seus muitos netos ou bisnetos consiga descobrir
nele o que significa viver um século. Enquanto isso, que viva outro
século, ou quanto lhe for dado viver; que se rebele aos que impeçam que faça o
que quiser fazer; que coma o que lhe der ganas de comer; que dance o quanto
quiser dançar; que ralhe com quem achar que deve ralhar; que leia seus livros e
jornais nipônicos quando lhe der na telha; que assista aos seus programas favoritos
desde o Japão; que cante as muitas e belas cantigas da sua tão longínqua
infância; que reúna, sempre que puder, toda a sua prole de filhos, netos e
bisnetos, genros, nora e demais agregados; que estes a respeitem e lhe
enalteçam toda a aura e sabedoria dos centenários; que, finalmente, se sinta
leve e livre de todas as responsabilidades acumuladas durante seu primeiro
século. A ela, vida ainda mais longa!