quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Causo 85 - O Paletó do Alípio - J. Gamaliel A. Ramos


                                                                        José Gamaliel Anchieta Ramos
           Na vida dele, tudo mudou para melhor. Antes dos bons tempos, eu o atendia amiúde no escritório local do serviço de extensão rural. Com o atropelo dos afazeres, quando percebi, já estávamos afastados.
           Pouco a pouco, o pequeno agricultor Alípio Teixeira expandiu os seus negócios, produzindo não só para o próprio sustento. As áreas com hortaliças aumentaram conforme comprava mais terras.
            Fazia viagens à Central de Abastecimento, de duas a quatro por semana, para entregar os produtos das propriedades, com produções aperfeiçoadas a cada safra. 
            No tempo do frio, o produtor e sua família se aqueciam com o mesmo paletó, um a um. Em qualquer ocasião ou lugar, nas festas, no escritório, na escola ou nas ruas, era o agasalho do grande e do pequeno, fosse homem ou mulher.
            Cor de cinza, não era feito de tecido grosseiro. Também não chegava a ser uma peça de alta qualidade. Como não se importavam tanto com o modo de vestir, eles nunca deixaram de trajar o surrado casaco de tergal xadrezinho. 
          Certo dia, um fato enigmático ocorreu. Era noite quando acabei de visitar umas fazendas. Na volta, depois de uma curva da estrada deserta, encostado à direita, vi o caminhão do Alípio, abandonado.
            Nas proximidades da roda traseira estava o dono do veículo, caído, imóvel. De longe, tinha ares de morto.
            De perto, quando me ajoelhei ao seu lado, percebi que nada dele se movia porque realmente estava morto. Ele não podia me contar o que queria saber. Eu não entendia nada. Para mim, o ocorrido não fazia sentido.  Parecia um crime. Que mistério seria aquele? Quem teria feito aquilo? 
            Eu não estava confuso quanto a um detalhe. Não houvera luta. A profunda marca de ferimento na cabeça, pouco acima da nuca, indicava que tinha recebido um traiçoeiro golpe, desferido pela barra de ferro que encontrei ao lado do corpo, junto ao pneu.                                                                       
            Não era hora de pensar muito. Entendi que deveria agir com rapidez. Quis carregar o cadáver, mas avancei apenas alguns passos. Então, passei a arrastá-lo, medida que também exigia bastante esforço.
            Finalmente, acertei quando decidi encostar o carro ao lado do corpo. Mesmo que ele não pudesse ouvir, pedi desculpas pela falta de jeito, enquanto o empurrava para o banco traseiro.
            Em seguida, fechei as portas e parti em direção à cidade. Entreguei o defunto ao delegado. Uma, duas, outras, outras mais, uma dúzia de perguntas foram feitas.
            Fiquei de olhos esbugalhados ao ter de passar por um interrogatório. Não satisfeito com as respostas, o homem marcou depoimento para as 10 horas do dia seguinte.
            Pois é, a autoridade não acreditara na minha boa intenção. Saí de lá na condição de suspeito.
            Naquela noite, não alcancei o descanso. Acontece que, desperto, pude sentir o tamanho da idiotice que fizera. Ouvia bêbados, cães, galos, motores, o caminhão recolhedor de lixo, a festa ao lado, a máquina do relógio de parede, a descarga do banheiro vizinho. Ouvia, ouvia, pensava, pensava.
            Uma insegurança trouxe à mente idéias que me deixaram todo cismado.
            Estava sobrecarregado e, cada vez mais perdido naquela situação. Não vinha à lembrança nenhuma outra circunstância desesperadora ou incontrolável que pudesse ter vivido.
            Imaginei quanta culpa, quanto sofrimento, quanta contrariedade teria poupado com uma simples omissão. Mas não quis deixar o Alípio abandonado, ao relento.  Por toda noite remoí pensamentos, sem encontrar solução para o problema. Eu estava encrencado, na verdade tinha cometido uma grande loucura.       
           Pela manhã, cheguei ao local de trabalho, aberto pela secretaria. Estava para começar um dia fatigante. Iria atender um produtor ou outro. Após minha ida à delegacia, se corresse tudo bem, viajaria a capital a fim de participar de uma reunião no escritório central da empresa.
           Nem tinha levado à boca a xícara fumegante de café que a secretária havia colocado sobre a mesa quando, de repente, a porta se abriu e entrou na sala um jovem.
           Quem seria e o que desejava tão cedo?
           Ninguém jamais o vira em nossa pequena cidade. A estampa do moço mostrava algo que eu conseguia ver, claramente. Talvez estivesse diante de mim alguém pronto a me tirar daquele apuro. Mesmo tendo a mente invadida por pensamentos, resolvi dar carona ao desconhecido, que estava ali para pedir isso.
           Antes de viajar, fui à outra sala, tranquei a porta e dei um rápido telefonema. Depois, convidei o moço a entrar comigo no carro.
           Saí pelas estreitas ruas, subindo e descendo ladeiras, deixando para trás alguns quarteirões. Em frente à delegacia havia uma batida policial. Viaturas no local, vários militares armados, de pé, um deles mandou que eu parasse.
           De modo inesperado, cercaram e invadiram o carro, arrastando o passageiro com sua bagagem. Ele seguiu escoltado para o interior da repartição.
           Mais calmo agora, fiquei observando o que acontecia.
           Meia hora depois, o delegado confirmou que o moço acabara de contar como tudo havia acontecido.
            Ele e Alípio se conheceram na Central de Abastecimento. Vieram de Goiânia na tarde do dia anterior, pois Alípio o aceitara como empregado.
            No momento em que o novo patrão trocava o pneu, o rapaz o atingiu por trás com a barra de ferro. O ataque foi ao anoitecer, para roubar dinheiro e cheques. Por causa do frio, o ladrão resolveu apanhar também o paletó da vítima. Do local até a cidade, seguiu a pé.
            Como a rodoviária estava cheia de policiais, não teve coragem de fugir em algum ônibus.  No Boteco do Benzinho, foi informado que talvez conseguisse viajar de favor com o técnico do escritório da Emater. Preferiu esperar pelo dia seguinte.      
            Não fosse o inconfundível paletó, dificilmente teríamos descoberto o assassino de Alípio. Quando liguei do escritório, eu disse ao delegado:
           —  Delegado, não preciso mais depor.
           —  Por quê?
           —  Porque o assassino do Alípio está aqui, no meu escritório.
           —  Por que você tem tanta certeza? Ele disse que matou o homem?
          —  Não, mas ele chegou vestido com o paletó do Alípio.  
          —  Verdade? Você pode vir com ele à delegacia, agora?
          —  Posso. Espere, já levo o moço para o senhor conversar com ele!
          —  Positivo! 

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Crônica 14 - Sarau

                           José Carlos Neves
                                   Evento que incentiva as  artes do antigo e do novo;
                                   Livre expressão das tradições e cultura de um povo.  (JCN)

         O meu amigo Trasmontano estica um pouco a cabeça para a frente, faz um anteparo com a mão no ouvido, em forma de concha, e acaba num inútil esforço para entender o poema que uma poetisa saída da plateia tenta transmitir a um público atento. Por causa da sua avançada deficiência auditiva, ele não consegue ouvir muito do que expressam os versos, mas devem ter sido do agrado de todos, pois são recebidos por calorosos aplausos, esses sim, audíveis. Logo após, uma atração masculina é chamada ao palco e, à capela, entoa uma desconhecida canção que parece vir de algum rincão gaúcho. Ninguém lhe faz coro, mas todos o aplaudem, e feliz volta ao seu lugar entre os assistentes. Depois é a vez de um cronista em prosa e verso, a prosear e versejar sobre suas muitas andanças e lembranças por esta megalópole paulista. Um entusiasmado mestre de cerimônias vai anunciando as humildes mas orgulhosas atrações, que vão sucedendo uma à outra, a mostrar a capacidade criativa de cada uma, como a servir de aquecimento para apresentações mais tardias e pretensamente mais nobres.

        Num breve intermezzo, o meu amigo rebobina a memória sobre o que o teria levado até  à Subprefeitura do Tucuruvi, e a deslocar-se desde o Sul ao Norte da cidade, para ser participante passivo e ativo daquele sarau. Aposentado, entre as várias atividades da sua nova condição de idoso, ele decidiu juntar-se a um coral,  - incentivado pela Ultrafarma - formado por homens e mulheres que, como ele, buscavam ocupar seu tempo com algo que lhes proporcionasse qualidade de vida, prazer e, ao mesmo tempo, pudessem comparti-los com outras pessoas. Nada melhor e mais democrático que o canto! Ele é o mais recente, mas não mais novo, integrante do grupo, cuja média de idade deve andar aí pelos ...enta. Como em todos os grupos nessa faixa etária, a quantidade de mulheres é de uma maioria assustadora. Neste, em torno de 25 pessoas, apenas 4 destemidos e heróicos homens se atrevem a participar desse exército vocal – de pouca técnica e muita alma – sob o comando da maestrina Doroty, uma dama-guerreira indomável – apesar da idade e aparente fragilidade física - secundada por Élcio, maestro e paciente tecladista, a dosar e modular os arroubos vocais e gestuais da mestra.

        As apresentações recomeçam no palco, agora com uma senhora, saída não se sabe de onde, e cujos trajes revelam dias difíceis, a contar piadas, como num  stand up show, e a tentar, talvez, colocar um pouco de humor e felicidade na sua vida, e na daqueles que a aplaudem neste momento.É então a vez de mais um cavalheiro que vem para  cantar e contar que “As Rosas não Falam”, e seria uma bela interpretação não fosse o chiado estridente do seu play back. Mas logo uma roda de senhoras, de muitos ...entas de idade, ocupa um espaço abaixo do palco para uma demonstração de dança circular, na qual rodam graciosamente  seus passos de dança e, a girar e girar, fazem do círculo a sua “roda viva”, como possivelmente terão sido suas vidas: uma roda ainda mais viva. Um cantautor, com seu violão, as sucede com 3 canções de sua autoria. O bloco é fechado com outra senhora, com alguns quilos demais e a prever-se, por eles, alguma vida de menos, que se inscrevera só para dizer como “estava feliz de estar ali, e como a Primavera era linda”. Aplausos para todos, alguns calorosos, outros caridosos.

        E em mais um intermezzo, o amigo Trasmontano volta a pensar no seu grupo.
Sente-se um pouco envergonhado porque ainda não conhece quase ninguém pelo seu nome, excepto da maestrina e maestro, e dos demais dois homens, por sua minoria. A onomástica ainda não alcançou o estágio de permitir que, pelo nome, se reconheça a anatomia facial equivalente, neste país tão multifacetário. Tímido, ainda não se apresentou a todo o grupo, nem procurou saber quem era quem, como também não se atreveu a revelar a sua preferência cancioneira. A sua sensibilidade musical é puramente intuitiva; ele não consegue identificar nenhuma nota dos do, re, mi, fa..., e por vezes até confunde partitura com pauta, mas está seguro da sua inclinação pela boa música, aquela que lhe penetra o corpo e a alma, sem se importar se é erudita ou popular. A sua memória musical é antiga, quase toda anterior a 1980. Por muito que tente, não consegue memorizar as músicas mais contemporâneas. Nem sempre concorda com o repertório do coral, que poderia ser mais universal, como deve ser a música, mas o respeita, e ainda não se atreveu a pedir a inserção de algumas de  suas canções prediletas.

       Oops! Estão a chamar para a apresentação do seu grupo. Então, lá vai o meu amigo, com um certo frio na barriga, mas disposto a dar humilde contribuição vocal ao ambiente, junto com demais companheiras e companheiros, e com eles sentir-se  próximo do belo – como é próprio da boa música -, e transmitir essa mesma sensação a todos os presentes. Meia dúzia de razoáveis interpretações depois, os aplausos soaram calorosos, não se sabe se pelo real prazer sentido, ou se pelo incentivo a continuar. Para encerrar, outro grupo vocal, formado só por mulheres – sempre elas –, exceto o maestro, se apresenta com 3 belas canções nacionais. Os aplausos são praticamente de igual intensidade, a indicar equânime agrado. Afinal, não era uma competição musical, mas sim a necessidade de cantores e ouvintes se sentirem mais vivos e mais úteis nessa catártica interação de prazer e entrega.

        É hora de tomar o metrô de volta para a Zona Sul e, no seu assento de idoso, o meu amigo repassa mentalmente o evento com  aquelas cerca de 150 pessoas que,  ativa ou passivamente, participaram do sarau. Lembra da música “Mulher Brasileira”, magnificamente interpretada pelo outro coral, e da avassaladora maioria de mulheres, idosas, ou próximas  de sê-lo, como ele. Como as do seu grupo, bravas mulheres! que não se intimidam com a idade, e nem com o tonto constrangimento masculino de participarem de ações que, além de lhes trazerem e doar prazer, com certeza lhes deixarão um razoável bônus de longevidade. Em outra atividade, ele recentemente protagonizou uma crônica sobre meditação, além de muitas outras já escritas e a escrever. Como na literatura, o meu amigo pode ter descoberto tardiamente sua vocação musical, mas com certeza ainda lhe restará  tempo para que possa fazer do saldo da sua vida um longo sarau lítero-musical.


JCN – NOV -  2013

terça-feira, 12 de novembro de 2013

Crônica 13 - MUITO ALÉM DO JARDIM

                                                José Carlos Neves
                                                 A meditação é a árvore dos ramos do pensamento;
                                            À sua sombra viajamos através da vida e do firmamento.  (JCN)
                                                                                                                                                 
        O meu amigo Trasmontano calça o sapatenis, desce um lance de 3 ou 4 degraus, e alcança o jardim. Em silêncio, sente os pés a pressionar o piso de cimento e observa os contornos dos estreitos caminhos, reservados à circulação dos caminhantes, e ladeados por canteiros e floridas árvores. Com os olhos semicerrados, intui, mais que vê, vários outros vultos que, como ele, andam para cá e para lá em indefinidas direções e passos, como se em catártico e coletivo transe buscassem algo desconhecido. O meu amigo, numa suave passagem do plano real ao puramente meditativo, de repente encontra-se num ambiente socrático, na acrópole de Atenas,  como humilde e maiêutico discípulo a aprender ou inquirir de Sócrates sobre os mistérios da sabedoria do homem sobre si mesmo e o universo. Uns segundos mais e outros vultos passam por ele – talvez para aproveitar o mesmo cenário – os quais, por seu luto e melenas, neles reconhece serem as mulheres do Chico e de Atenas.

        Minutos antes, a psicóloga, monitora das atividades, pedira a todos que saíssem para o jardim, acessível  pelo fundo da sala, para que sentissem o que poderia ser uma nova experiência para a maioria: um convite à meditação, em contato com a natureza e seus sons, e à auscultação do seu próprio silêncio. Era o segundo exercício do meu amigo sobre meditação, e mais uma de  um rol de atividades oferecidos pela PreventSenior, com o objetivo de prevenir enfermidades físicas ou psíquicas, tão próprias da idade da maioria dos seus conveniados. Ele teria preferido outra atividade, como literatura, coral ou teatro, ainda indisponíveis, por isso fora levado quase à força pela sua mulher, esta sim mais habituada a esses exercícios por sua natureza oriental. Como em todos os grupos de que o meu amigo participa, voltados para a terceira idade, também neste predominam as mulheres com maioria avassaladora. Ele entende que a maior parte dos homens, por vergonha ou pelo tonto preconceito  de  julgarem sua masculinidade ofendida, se sentem constrangidos e demasiado jovens ou velhos para participarem de atividades que julgam ser de mulheres. E assim se auto condenam ao isolamento, ou à morte precoce, e a deixar às suas bravas esposas ou viúvas a responsabilidade e a sapiência de substituí-los, e autopreservar-se por quanto tempo a vida ainda lhes possa ser prolongada. Talvez já menos exigidas por maridos, filhos e obrigações profissionais, finalmente, e com mérito, encontram tempo para si mesmas.

      ...Dados alguns passos mais, uma rosa, que ele vê transformar-se na Roselândia, onde quase 50 anos antes havia pedido a Eiko, a sua amada flor oriental, em namoro. E ela própria, que o acompanha nesta curta caminhada – a da vida é bem mais longa – pára para observar uma árvore florida, que o meu amigo pronto transforma num imenso jardim de cerejeiras em flor. Dois passos mais, e um girassol, já ligeiramente murcho, de repente se traslada a um iluminado campo de coloridos, frescos e bem vivos girassóis, como numa tela de Van Gogh, ou num filme de Kurosawa. Avançando um pouco mais pelo jardim, os vultos das muitas mulheres a passear pelas curtas e estreitas alamedas, e que em alternantes e intermitentes sensações, lhe parecem, por vezes ninfas flutuantes sobre tranquilos lagos; bacantes à procura de seus bem amados na penumbra das tavernas; valquírias cavalgantes em busca de meritosos guerreiros ao prêmio do valhala; intrépidas cruzadas a vagar pelas brumas de Avalon em defesa do Rei Arthur. Chega a ouvir o som longínquo e suave de alguns acordes da medieval Greensleves, e cantarola algumas notas a boca chiusa. Agora, 2 ou 3 frondosas árvores o transportam para os bosques de Viena, onde bailará uma valsa de Strauss, ou se  deslumbrará com uma ópera de Mozart. Um pouco mais, e um estranho sistema de vasos comunicantes, montado por taquaras secas numa das paredes, o levam até às noras de Sampaio, sua aldeia trasmontana, a regar as hortas e a vida da sua infância.

        Logo à entrada, os participantes são convidados a tirar os sapatos e pisar descalços sobre um tatame quadrado ladeado por cadeiras nos seus 4 lados. A psicóloga, uma jovem adulta de idade não revelada, mas suficiente para liderar e comandar idades que, somadas, ultrapassam 1000 anos. A sua postura corporal e cênica, altiva, de movimentos suaves, teatrais, olhar profundo e penetrante, voz alternadamente modulada em distintos decibéis, transmitem credibilidade e carisma a todos os participantes. Ela sabe que tem a difícil tarefa de fazer com  que todos deixem fora da sala a compreensível inibição daqueles que se encontram frente a frente pela primeira vez, e com quem irão interagir durante várias sessões e, quem sabe, ter que expor prazenteiras ou dolorosas confidências. Desde a primeira aula, ela lembra ao meu amigo a sua gata persa, tricolor atartarugada que, com seu caminhar senhorial de uma old lady, mas  que com felina agilidade, escala até a última estante  de sua já reduzida biblioteca para,  lá do alto, e qual Cleópatra ou impenetrável esfinge, em faraônica e professoral vigília, parece guardar 40 séculos de História e sabedoria. Por incrível e curiosa coincidência, e sem depreciar os nomes de nenhuma das duas, ambas atendem por “Vivi”. 

      ...Uma intrometida e deslocada churrasqueira no jardim, prendem meu amigo por mais algum tempo na sua aldeia,  junto ao borralho de uma lareira - iluminada por bruxuleante candeia - para aquecer a sua alma, enquanto a neve, leve e silenciosamente cai lá fora, em brancos flocos de algodão. Desde o campanário da pequena igreja despencam os sons das badaladas de um sino imemorial, desde quando ele ainda não era Pessoa, e o Fernando já havia deixado de sê-lo, e feito versos sobre ele, sino. Como contraponto, seu pensamento o traz de volta aos trópicos, a lembrar-lhe a sua adolescência enfarinhada nas noites mal dormidas sobre os tabuleiros do pão da madrugada, junto aos fornos de  várias padarias. Os rostos dos companheiros de jardim, indefinidos ou identificáveis por suas origens diversas neste país multifacetário, o empurram de volta às muitas viagens – breves ou longas - que fez por muitos países do mundo, a fazer dele um ser cosmopolita. Mas, entre eles, na rapidez e no brilho de um raio de luz, vê o rosto pleno de luso-nipo-brasilidade do seu Júlio Gabriel, filho e a maior e mais precoce entre as várias perdas desnecessárias do meu amigo, a contrariar Judith Viorst em  “Perdas Necessárias”.

       A psicóloga, à porta e do alto dos degraus da conexão sala/jardim, qual guia de excursão, chama de volta os jardineiros, que plantavam e colhiam pensamentos, para a sala de exercícios. Os 5 minutos de recreio – inferiores ao tempo de leitura desta crônica -  já se haviam esgotado e pareceram demasiado curtos para tanto pensar. Todos voltam lentamente, agora com imagens mais claras e menos difusas, como se retornassem de um sonho ou regressão hipnótica. Retomam sua aula de equilíbrio psico-físico de corpo, alma e mente geriátricos que, no Trasmontano, são totalmente descoordenados. Os entreolhares já são menos disfarçados e temerosos; os sorrisos mais abertos e descontraídos. Alguns até se atrevem a contar o que sentiram na sua experiência meditativa; as guardas são baixadas; o degelo é gradativo;  e ao meu amigo parece-lhe que até já paira um certo clima de sociabilidade latente no ar. Quem sabe, na próxima? Como ensinamento mínimo, os curtos 5 minutos de meditação trouxeram uma certeza a todos: a de como a contemplação de cada detalhe da natureza pode levar ao universo interno e externo de cada um, e de que a infinitude da mente humana, não importa em que idade, pode e deve ir ...muito além do jardim.


JCN – OUT - 2013

quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Causo 84 - Meu Portuñol


Nicanor de Freitas Filho

            Em 1977 fui trabalhar na Cia. Melhoramentos de São Paulo, como Economista, responsável pelo Orçamento Geral da chamada Divisão Caieiras. Como o trabalho de Gerenciamento do Orçamento é relativamente calmo, pois confeccionado o orçamento, tem-se somente que acompanhar, meus “chefes”, que eram muito camaradas comigo e queriam que eu crescesse dentro da empresa, sugeriram que eu analisasse e respondesse centenas de cartas, do exterior, que solicitavam preços para cadernos e papeis crepados, que eram os principais produtos da minha Divisão.
            Eu não sabia outra língua, que não o Português, mas aceitei o desafio, desde que a Secretária da Diretoria, que falava 5 ou 6 línguas, me ajudasse. E assim escolhia a carta, ela passava para o Português, eu analisava, pedia os orçamentos, respondia em Português e ela passava para o Inglês ou Espanhol e, até algumas poucas, em Francês. E eu fui gostando e como tinha muita coisa parecida, eu já tinha aprendido muito, principalmente do Espanhol, mais parecido com o Português. Muitas cartas eu “montava” por minha conta. Já no ano de 1978 emplacamos um primeiro pedido de cadernos, para o Chile, no valor de 14 mil dólares. Para mim foi um dos melhores momentos da minha vida profissional, pois nunca tinha pego, nas minhas mãos, o resultado do meu trabalho, que como Economista fazia muita coisa, mas não via “fisicamente” nada. Agora tinha obtido um pedido de 14 mil dólares, que ia gerar uma das receitas que eu orçara. Era demais!
            Em dezembro de 1978 fui para o Chile – minha primeira viagem internacional – com o meu Chefe, para negociarmos com a maior rede de Supermercado de lá. Fechamos um bom programa para 1979 e ainda contatamos mais alguns clientes potenciais. A viagem foi muito proveitosa!
            Quando foi em outubro de 1979, a rede de Supermercados, solicitou nossa participação na FISA – Feira Internacional de Santiago – pois eles estavam com um grande estande e representavam várias empresas brasileiras. Fui designado para ir para Santiago e ficar por 15 dias, que era a duração da Feira. Reservaram-me um hotel pequeno, chamado Hostal Del Park, muito simpático e era quase um flat, pois tinha uma quitinete, além de uma antessala. Quando chegava à noite – a feira ia até às 22:00 h – tinha na antessala máquina de café, mesa, talheres, frutas, café e leite. Os dias que a fruta era laranja, eu tinha que usar meu canivete, pois as facas de lá não cortavam e eu sou chato para descascar laranja.
Este canivete de estimação, que tenho até hoje, feito em Campos Altos, artesanalmente e é uma verdadeira joia.      
            Um dia, ao chegar na feira, fui abrir um pacote de cadernos, que estava amarrado com barbante, e quando levei a mão ao bolso, não encontrei meu canivete. Logo imaginei que o tinha esquecido no prato com as cascas de laranja.
            Chegando à noite, no hotel, só tinha um “porteiro”, eu nem perguntei, pois ele não entendia direito meu “portunhol”. Na manhã seguinte, quando desci à recepção, estava lá a simpática recepcionista, chamada Hanja (pronuncia-se “Rânia”), que sempre entendia tudo que eu falava no meu “perfecto Portuñol”.  Então seguiu-se o seguinte diálogo:
- Rânia, olvide my caniviete, ayer, junto con las cáscaras de naranja. Alguiem lo hay encontrado?
- Perdona-me señor Nicanor, que usted hay perdido?
- My caniviete.
- Pero, lo que és un caniviete?
- Por Dios! No lo sabes? És una faca que si dobra para dientro de lo cabo!
- Y lo que és una faca?
- Tambien no lo sabes? Faca és una pieza que se usa junto con el garfo!
- Pero, lo que és un garfo?
- Rânia, por favor, no lo sabes o que és un garfo? Garfo és la pieza que junto com la faca y la colher se llama de talleres!
- Talleres gráficos? Pero son mui grandes, como olvidaste una coza desta?
- Rânia, por favor, fijarse: como se llama las 3 piezas que usted utiliza para cenar?
- Yo, particularmente, utilizo la cuchara, ya que my gusta la papilla.
- Oh! Que bueno! Y como si llama las 3 piezas que se utiliza para comer?
- El servicio!
- Y como se llama la otra pieza del servicio?
- Puede ser un tenedor?
- Muy bien! Y como se llama la otra  pieza, para cortar la carne?
- Se llama un cuchillo!
- Muy bien Rânia, y como llama el cuchillo que se dobra para dientro  del cabo?
- Ah, señor Nicanor, és un cortaplumas! Si, si, la mucama hay encontrado un cortaplumas, muy bonito, que todavia, no conseguimos cerrarlo. No és este? No le ocurria en cual habitación fué encontrado.  Perdona-me, pero cá está!
- Uffa!! Que bueno, porque me gusta mucho este cortaplumas! Muchas gracias!
            NOTA: Tenho este canivete até hoje, ganho de um dos meus irmãos, e elas não conseguiram fechá-lo, porque tem um pino que o trava.
            Tenho outra estória deste “cortaplumas” no Perú. Depois eu conto...