quinta-feira, 10 de janeiro de 2013

Causo 78 Esse meu neto...



Nicanor de Freitas Filho
            Meu neto, que está com pouco mais de 5 anos, e ainda não é alfabetizado, já demonstra uma certa facilidade com números. Já conta até onde se queira e faço questão de, sempre que possível, colocar o raciocínio matemático dele à prova. Também já o ensinei a mexer com as peças de Xadrez. Não posso dizer ainda, que ele saiba jogar Xadrez, pois ele ainda acha que o principal e comer as peças do adversário. Já houve casos curiosos onde ele demonstrou que entende perfeitamente a lógica matemática e tem noção exata de quantidades.
            Sempre que vou buscá-lo na Red Balloons e levá-lo diretamente para a Escola Infantil, há dias que gastamos até meia hora para andar cerca de 3 quilômetros. Então vou sempre conversando com ele, perguntando sobre o que aprendeu e o que aconteceu. Muitas vezes ele vinha lendo as placas de carro falando os números em inglês. Num dia, resolvi explicar para ele que cada 4 números das placas tinha uma maneira de falar. E expliquei para ele que quando temos 4 números, para falar corretamente, dizemos o primeiro número seguido de “mil”, o segundo número seguido de “centos” ou “zentos” e o terceiro e quarto eram como ele conhecia. Nas primeiras tentativas ele se embaralhou com “quinhentos” porque dentro da lógica que expliquei ele disse “cinco centos”. Então expliquei para ele que o um, o dois e o cinco eram diferentes! Logo ele viu uma placa 7345 e disse corretamente “sete mil, trezentos e quarenta e cinco”. Em Seguido mostrei uma com “quinhentos” e ele matou: “três mil quinhentos e doze” e assim ele foi lendo todas as placas. Quando paramos em frente à Escola Infantil, ele desceu do meu carro, foi até à frente, olhou a placa e sem titubear: “Vovô, sua placa é número ‘zero mil, duzentos e trinta e nove’”. Pude ver que ele tinha assimilado a lógica perfeitamente. Era só explicar agora, que o zero não precisa falar.
            Ele é “abusado” nas perguntas, principalmente com as idades. Ele tem uma amiguinha na Escola Infantil, de quem ele gosta muito. Ela tem um irmão de um primeiro casamento com 20 anos (ela tem 5 e meio como o meu neto). Ele perguntou para a Mãe dela: “Fulana, quantos você tem?” Ela respondeu com muita clareza: “Tenho 18 anos”. Ele franziu as sobrancelhas e repetiu admirado: “18 anos?!”  Logo em seguida, chegou o irmão mais velho da amiguinha e ele, de novo, com sua indiscrição perguntou: “Sicrano, quantos anos você Tem?” Ele, sem saber de nada respondeu: “20 anos”. O meu neto resmungou: “você tem 20 e sua mãe 18??” Passou mais um pouquinho, ele voltou com a indiscrição: “Fulana, quantos anos tem o Beltrano? (pai da amiguinha dele). Ela respondeu: “ Ele vai fazer 50 no ano que vem”. Ele mais que depressa: “Então ele tem 49?” E torcendo o nariz: “ Ele tem 49, o Sicrano tem 20 e você tem 18? Huuummmm!!!” Não comentou mais nada, mas garanto que pensar ele pensou!
            Hoje, fomos à piscina do prédio, onde ele brinca muito bem com o espaguete e a prancha de isopor. E como sempre procuro conversar com ele, sobre tudo. Ele como sempre prefere conversar sobre números. Ele vem contando sempre quantos meses ele tem, pois como a irmãzinha só tem 11 meses, para efeito de comparação, fica mais fácil para ele contar também em meses a idade dele. Então ele me disse que estava com 68 meses e me perguntou quantos meses eu tinha. Fiz uma conta rápida, pois no mês que vem completo 69 anos. Rapidamente fiz a conta de 70 anos e vi que davam 840 meses, tirei os treze meses e disse para ele 827 meses. Ele disse: “Nossa!! Quantos meses!” Então expliquei para ele que faria 69 anos no mês que vem, por isso eram tantos meses. Ele pensou um pouquinho e disse: “Vovô, olha só, no mês que vem eu faço 69 meses e você 69 anos... que legal!”
            Esse é o meu neto...

domingo, 6 de janeiro de 2013

Causo 77 Travessia do Tempo


                   
                              Nascemos e crescemos em busca do futuro; é a nossa esperança.
                           Amadurecemos, socializamos, multiplicamos; é a nossa realização.
                     Envelhecemos, estorvamos, nos isolamos; é o nosso crepúsculo. (JCN)

 José Carlos Neves

        O manobrista olhou atentamente dentro do carro, viu a Eiko e Elisa,  e dirigiu-se ao JK, que guiava, e apontou para o meu amigo Trasmontano, no assento do carona, dizendo, ou melhor, concedendo: “Como ele é idoso, o Sr. pode estacionar em qualquer destas vagas reservadas”. Acabavam de entrar no estacionamento de um grande restaurante – dizem ser o maior do país, e preferido de Lula – em São Bernardo. Pois é, todos tinham ao redor da mesma idade, mas o olho clínico do manobrista só reconheceu no meu amigo os seus 67 anos. Graças a isso, todos, mais o carro dos seus cunhados, tiveram o reconhecimento de serem tratados como idosos. Aleluia! Esfuziante, o Trasmontano só não pulou de alegria porque seu corpo, um pouco acima do peso e cansado, não logrou levantar os pés grudados ao chão, como imantados. Afinal, em 22/09/12, era premiado com  uma quota ou deferência social que deveria ter algum dedo lular,  já que o seu dono (do dedo) era assíduo frequentador do restaurante, e nunca ninguém neste país havia concedido tantas benesses à terceira idade. O meu amigo, estarrecido, não pôde recusar o tratamento vip de uma vaga para idoso, pois já não havia outras à vista. Agora, além de aposentado, seria idoso e mais um cotista social.

        Intrigante! Era a primeira vez que alguém se referia explicitamente ao meu amigo como idoso. Essa palavra sempre lhe havia parecido tão atemporal para si que demorou a dar-se conta de que a observação do manobrista era com ele mesmo. Na verdade, ele nunca havia tido percepção da sua idade real. Não se lembrava de que houvesse passado por uma idade infantil, sentindo a infância como tal, ainda que tivesse algumas lembranças fatuais do período. O mesmo com a adolescência; com o jovem adulto; com a meia idade; e mesmo com a idade madura, diga-se até aos 60 anos. Até então,  sempre se  houvera sentido numa idade mediana, permanente, algo como ao redor de 30 anos, só para uma noção numérica. Era assim como se houvesse nascido próximo a essa idade e, ao mesmo tempo, tivesse passado e vivido todos os acontecimentos pessoais e naturais a cada uma das etapas da vida anterior e posterior aos 30. Talvez o fato de haver tido uma infância e adolescência – ou a ausência delas – quase nulas, i.e., por raramente desfrutar da leveza e do direito de vivê-las no que elas têm de prazeroso e inocente, mas vivê-las intensamente com o peso da responsabilidade e dever de um adulto, é possível, sim, que isso tenha cristalizado no seu inconsciente a falta de percepção desses períodos etários. Ele se lembra de alguns atos do quase bebê; do menino de aldeia trasmontana a ajudar nos trabalhos de adultos, mas sem os brinquedos e leveza da infância; do adolescente responsável por ajudar a família, mas sem liberdade e a magia contestadora da adolescência; do adulto já livre, mas com os deveres e responsabilidades do chefe de família; do homem maduro e independente, mas subjugado pelos deveres profissionais, sociais e familiares, no mundo que ele constituiu em volta de si, quase sem se aperceber.

        Até aos 60 anos, o meu amigo sempre teve a sensação de que o seu futuro ainda estava por chegar. Embora considerasse os sexagenários já entrados na terceira idade, isso acontecia só com eles. Ele seguia buscando seu futuro, até que este viesse buscá-lo. Ao completar 60 anos, a Eiko e o Cláudio decidiram fazer-lhe uma festa-surpresa. E, pela primeira vez, deparou-se com seu futuro. Tentou empurrá-lo para mais longe, mas percebeu que ele não estava mais de costas; e trombou com ele; bem de frente! Os 60 anos representaram o seu marco de chegada. O seu prêmio era o futuro que ele acabara de encontrar, e, como se recusava a chegar até ele, foi o futuro que,  abrupta, inesperada e inexoravelmente chegou até ao meu amigo. Finalmente, começou a sentir-se com os seus 60 anos. Dali em diante, não precisaria mais tentar escapar do futuro, pois já estava enredado nele. Não havia mais como fugir, e diante do estupro etário inevitável, só lhe restaria relaxar e gozar o quanto e se pudesse. Foi só alguns anos depois desse choque que, gradativamente, começou a aceitar o que antes se recusava a usar no seu cotidiano geriátrico, não sem sentir um grande constrangimento: as filas preferenciais; o transporte gratuito em ônibus e metrô; os programas de saúde preventiva; alguns remédios gratuitos; até chegar – maravilha das maravilhas – à vaga para idoso.

        Hoje, com 67 anos, o meu amigo já gastou 7 do futuro que ganhara aos 60. Ele desconhece quantos ainda tem na sua poupança etária, por isso trata de gastá-los com parcimônia. O peso da idade, para ele, parece ter funcionado como um peso físico. Alguma coisa como começar agarrando um halteres de 1 kg; leve, pois pesa só 1 kg; e vai agarrando mais 1+1+1+...= n kg, até atingir um limite de capacidade física que variará de pessoa para pessoa, de acordo com a sua constituição corporal, etária e treinamento para suportar tal ou qual peso. Os efeitos na sua idade funcionaram com bastante semelhança: os anos foram-se acumulando sem que sentisse alterações sensíveis no dia a dia e, mesmo com alguns acidentes e incidentes no seu percurso, pôde chegar aos 60 anos, sem perceber mudanças importantes. Mas, depois dos 60, ele tem sentido quase todos os sintomas, bons e ruins, a que a idade lhe dá direito e lhe impõe. Mas não lhe tirou o melhor: a liberdade de pensar. Afinal, quem se interessa pelo que os velhos pensam? Só outros em torno do mesmo nível geriátrico, que gradativamente se vão juntando a ele, a formar um grupo que, ainda que com ideias e estilos individuais diferentes, expõem suas experiências empíricas; seus pensamentos filosóficos, científicos ou literários, em textos como este, talvez pobre de erudição, mas livre como expressão de sentimento.

        Há uns 60/70 anos atrás, uma  pessoa de 50 anos era fisicamente velha; se formos para o início de 1900, aos 40 anos, também. É claro que o desenvolvimento da economia, da medicina, da maior produção de alimentos mais saudáveis, e mais higiene corporal e ambiental, tudo isso elevou os parâmetros de perspectiva de vida para além dos 70/80 anos, melhorando muito a saúde física e mental. Paradoxalmente, a agitação da vida moderna, a pressão social, profissional e familiar, o trânsito, a insegurança urbana e a competição por status e poder econômico, têm trazido ao Homo Sapiens distúrbios físicos  e psíquicos inimagináveis há menos de um século atrás. Melhorou-se na longevidade cronológica, na saúde física, na melhoria econômica, no status social, mas houve perda na qualidade psíquica com as fobias, o stress e todos os distúrbios mentais da vida moderna. O meu amigo começou a trabalhar, oficiosamente, aos 10 anos, e jamais teve qualquer dificuldade em empregar-se. Sempre que saía de um emprego, já tinha outro para começar no dia seguinte. Pois a partir dos 60 anos, depois de desligar-se definitivamente da sua Melhoramentos, nunca mais conseguiu um trabalho, desses que ele sempre foi à luta para conquistá-los, apesar da enxurrada de curriculuns distribuídos para os mais diversos cargos, cujas exigências e requisitos eram inferiores à capacitação e experiência acumuladas ao longo dos seus, hoje, 57 anos de trabalho. Descobriu que agora nada valem o seu pomposo curriculum e vivência internacional; o importante é ter networking e conexão com as redes sociais. Começou a sentir, enfim, que de fato havia passado dos 60. Talvez ainda não tivesse tocado nessa realidade mais cedo – que começa em torno aos 45 – porque passou mais de 30 anos na mesma empresa.  Sobram-lhe experiência profissional e intelectual, acima da média. Mas o paradoxo é que também lhe falta/sobra empregabilidade. Agora, quase no extremo crepuscular da ponte que liga as  margens etárias, está bem próximo de completar a travessia do seu tempo.

JCN – OUT - 2012