sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Causo 64 Segunda Lembrança...



Nicanor de Freitas Filho
            Como já contei, morávamos na casa da Dinha, minha avó, que costurava e fazia crochê para ganhar a vida. A Tia Suça trabalhava no Armazém do Zico Pinto, da Rua Capitão Izidro, a Lourdes ajudava a nos criar. Meu Pai era barbeiro no salão do José Perfeito, na Rua Boa Vista, antes do Banco do Brasil, quase em frente ao Bazar Fonseca, que ficava um pouco depois do Foto Parateca. A gente ia muito pouco no Salão. Acho que só para cortar os cabelos e quando precisava, por exemplo, comprar sapatos, porque tinha que experimentar, então íamos ao salão e na hora que folgava, meu Pai cortava nosso cabelo ou nos levava na loja. Lembro muito bem do salão, que era grande, devia ter umas 4 ou 5 cadeiras e era muito movimentado.
            Nessa época, creio que minha Mãe, além de nos criar, somente fazia tricô e crochê, não me lembro dela trabalhando fora, nessa ocasião, que deveria ser por volta de 1947.
            A família da minha Mãe é muito grande, tenho muitos primos e assim, a casa da Dinha todos os dias ficava cheia. Aliás, naquele tempo, acho que todos os dias ou a gente visitava alguém ou alguém nos visitava. Não precisava avisar, nem nada. Quando a gente chegava na casa dos tios, sempre tinha aperitivo e café para os adultos e doces e sucos para as crianças. Se quisesse almoçar ou jantar também podia. Sem avisar. Chegava e lá estava a comida que dava para todos.
            Explicando melhor sobre a Dinha. Ela era irmã da minha avó Carmelita, que faleceu quando minha Mãe tinha por volta de 2 anos. Meu avô Sinico – que não conheci, pois ele morreu em 1943 – ficou com 5 filhas e quem acabou de criá-las foi a Dinha. Assim, para mim ela era minha avó. Não a via de outra forma. Nessa época ela já era viúva. Tinha sido casada com Cassiano. Ela era boazinha demais, principalmente para mim, que era um de seus “netos” preferidos. Acho que eu e a Magda.
            Lembro-me que sempre tinha coisas na casa da Dinha. Lembro, por exemplo, que ela recebia sempre a Santa Teresinha, que ficava em casa, num altar sempre muito florido, na sala de visitas, por uma semana e todas as noites tinha a tal da novena. Mesmo durante o dia, muitas pessoas iam em casa para rezar para Santa Teresinha.
            Meus primos iam lá quase todos os dias. O Tarcísio era meu Padrinho de batismo, junto a Madrinha Cela. Gostava muito dele, que faleceu muito cedo, com sérios problemas de circulação. Lembro-me de falarem que ele tinha “flebite”, mas lembro também, que ele foi para São Paulo fazer uma cirurgia na cabeça.
            Uma noite, ele foi lá em casa e estavam lá outras pessoas, que não me lembro bem, quem seriam. Eu devia ter três ou quatro anos e sempre gostava de me empoleirar no colo dele. Nesse dia, estava no colo dele, quando lhe serviram café. Ele pegou a xícara e ao levar à boca, eu devo ter me mexido e o café caiu. Ele, por instinto, abriu as pernas, para não se queimar e não cair café na roupa e eu caí junto com o café. Bati a boca na beirada da cadeira de madeira, saiu aquela “sangueira”, todos vieram acudir e só me lembro de ouvir:
            “– Quebraram os dois dentes da frente!”
            Doía muito e no dia seguinte amanheci com o rosto muito inchado. Levaram-me ao dentista. Ele examinou e disse:
“– Não quebraram os dentes, eles ‘fincaram’ para cima. Vamos dar um jeito de puxá-los”.
Não me lembro o nome do dentista, nem onde era, mas lembro que minha Mãe e a Madrinha Cela estavam presentes no consultório (Ela era enfermeira chefe do Posto de Saúde). Daí para frente não me lembro mais nada nem como foi resolvido. Não me lembro de ter ficado “desdentado”. Então ele deve ter arrumado uma maneira de puxar os dentes. Mas é a segunda lembrança mais “remota” que tenho. Esta não muito boa!
Só para completar, no outro causo, quando descrevi a casa que morava, a porta de entrada tinha dois degraus. Lembro que uma vez, acho que mandaram arrumar alguma coisa na casa e os ajudantes de pedreiros fizeram o reboque de cimento, no chão ao lado do jardim, bem em frente à porta, logo depois dos degraus.  Aquilo secou e virou uma “casca áspera” no chão. Eu vim correndo não sei exatamente de que nem porque e passei direto pela porta, caindo de boca no chão, bem no lugar onde havia feito o reboque, que já estava endurecido e tudo enrugado. Ralei todo o rosto, principalmente o lábio inferior, do lado esquerdo. Até hoje, tenho uma “pelotinha” que ficou e nunca mais saiu. Mamãe uma vez, brincando falou:
“– Acho que essa pelotinha é uma bolinha de cimento que ficou aí ...”

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Causo 63 A mais remota lembrança...


Nicanor de Freitas Filho
            Rememorando...rememorando... cheguei à mais remota lembrança da minha vida!
Lembro que morava numa casa não muito grande, não muito velha, simples. Na entrada tinha um portãozinho, um muro baixo, e entre o muro e a casa – que ficava mais à direita – um jardim bem cuidado, onde se destacava um pé de dália, daquelas grandes, que quando atingiam o auge, pendiam para o lado.  A entrada era na lateral esquerda, onde também tinha um jardim, entre o muro do vizinho da esquerda – Professora Ernestina – e a casa. Nessa parte do jardim, o que mais chamava a atenção eram os pés de manacá, que entre a primavera e o verão, esparzia um perfume inebriante. Lembro-me que quando ia chegando à noitinha, parece que o olor ficava mais intenso e o cheiro era agradabilíssimo. Sem contar a beleza das flores, que mudavam de cor, indo do branco ao roxo, não sei como. Bem ao fundo do jardim, já passando pela porta de entrada, tinha um muro, que à frente tinha um pé de jasmim, com as flores amarelas, também muito bonitas e cheirosas. Aí no fundo, à direita, tinha um portão, que chamávamos de entrada do fundo.
            Essa entrada dava para um enorme quintal, tendo à esquerda um jardim – lembro-me perfeitamente da roseira branca – e uma pequena horta, que ia até junto ao muro. À direita tinha uma enorme amoreira, e a mangueira. Lembro de umas folhagens que iam até o muro, que separava a casa do “Tio Donato”. Ele não era meu tio não, mas como os sobrinhos iam para lá e brincávamos todos juntos, eles o chamavam de Tio Donato e nós também.
            Em frente à porta da cozinha, tinha um a “casinha de despejo” e ao lado o tanque de lavar roupas. Atrás da casinha de despejos ficava o enorme quintal, que fazia fundos com a casa do senhor Ermírio – homem muito religioso e bom – que tinha a frente para Rua Uberaba. Para se ter ideia do tamanho do quintal, lembro-me que tinha, além da horta, da amoreira, da mangueira, do jardim e da casinha de despejo, duas figueiras, um pessegueiro, um pé de fruta-do-conde, dois abacateiros, uma laranjeira, um pé de araçá, uma goiabeira e uma moita de bananeiras, bem lá no fundo. Além disso, minha Tia criava galinhas, eram poucas, talvez uma dúzia e tinha ainda uma área para jogarmos futebol, correr e brincar de tudo.
            A casa era da minha avó, de fato, Dinha, já que minha avó verdadeira morrera quando minha Mãe tinha 2 anos.  Moravam ainda, Tia Suça e a Lourdes, além da minha família, que nessa época que estou me referindo, eram minha Mãe, meu Pai, o meu irmão mais velho e eu.
            A primeira lembrança que tenho da minha vida foi no dia que nasceu minha irmã Maria Conceição. Chama-se assim, porque nasceu no dia 8 de dezembro, dia de Imaculada Conceição. Aliás, era este o nome da Tia Suça, que também nasceu num dia 8 de dezembro e por isso foi madrinha de batismo dela. Na verdade eu só me lembro de ter gente “diferente” (Dona Brígida, que era a melhor Parteira de Araxá) em casa e um movimento anormal. Meu irmão mais velho e eu querendo saber o que estava acontecendo, quando meu Pai nos chamou para “ajudar” enterrar o gambá, que ele havia matado. Explicando melhor: a Suça tinha lá suas galinhas, que botavam lá seus ovos – acho que quase todo mundo criava galinhas, pois lembro que o tio Donato também tinha, meus outros tios, verdadeiros, tinham – e ela havia dito que achava que tinha um gambá comendo os ovos das galinhas, pois estavam sumindo. Então fomos “ajudar” a enterrar o gambá. Só me lembro disso. Não me lembro de ter visto o gambá morto, nem nada. Quando chegamos atrás da casinha de despejo, estava lá meu Pai com uma enxada nas mãos “finalizando” o serviço. Na verdade era apenas desculpa para nos tirar da sala, ao lado do quarto onde minha Mãe estava em trabalho de parto.
            Lembro-me bem disso, porque, muitos anos depois, conversando em família, eu teria dito que lembrava o dia que minha irmã nasceu. Todos me olharam, com cara de “como? você era muito pequeno”. Eu sou de 15 de fevereiro de 1944 e a ela de 8 de dezembro de 1946, ou seja, eu ainda não tinha 3 anos. E naquele tempo a gente era muito mais boba que a molecada de hoje! Então eu perguntei:
            “– Não foi aquele dia que meu Pai matou o gambá?”
            Todos se entreolharam e a Suça disse:
            “– É, ele lembra mesmo!”
            É muito pequena a lembrança que tenho deste dia, mas é a primeira lembrança que tenho da minha vida. Não sei contar mais nada desse dia.

domingo, 16 de setembro de 2012

Causo 62 Viagem para Muzambinho


Nicanor de Freitas Filho 
            Ao relembrar o caso do Ettore comecei a retroagir no tempo para lembrar-me de outros fatos que eu pudesse contar aqui. Rememorando, lembrei-me da decisão de minha Mãe de me mandar para a Escola Agrotécnica de Muzambinho. Eu estava sem estudar havia um ano, trabalhando na Oficina do Padrinho.(http://www.freitasnet.blogspot.com.br/2012/09/causo-59-minha-formacao-profissional-iii.html)
            Vivíamos numa dificuldade muito grande, pois meu Pai estava “ausente” já fazia mais de 5 anos e minha Mãe nos sustentava com o salário de zeladora do Grupo Escolar Delfim Moreira, em Araxá. Para o meu irmão mais velho, ela já tinha conseguido lugar numa Escola Profissional em Belo Horizonte.
            No início de 1.956 minha Mãe me chamou e me disse que a Sra. Aparecida tinha arranjado uma vaga para eu ir para Muzambinho. Onde? Muzambinho! Eu só conhecia Araxá, Uberaba e Veríssimo. Tinha então 12 anos, acabados de completar em 15 de fevereiro daquele ano. Eu era uma criança muito ingênua, que nunca tinha saído da barra da saia da Mãe.
            Dona Aparecida, filha do senhor Mesquita – o farmacêutico – me chamou na casa dela e me entregou duas cartas, uma para na Escola Agrotécnica e outra dirigida ao W. M. M. e me explicou:
            “ – Você terá que ir até Uberaba, ir à Estação de Trem, no dia 22 de fevereiro, e às 13:00 h, você deverá estar lá e procurar o Waldir, entregar esta carta para ele, onde eu explico quem é você e peço para ele ajudá-lo no que for possível. Vocês vão comprar um passe coletivo escolar, porque deverão estar lá cerca de 10 menores, como você, que irão para a Escola Agrotécnica, onde ele já estuda e conhece tudo. Conheço-o e tenho muita confiança nele. Ele explicará tudo para você.  Vocês vão fazer um exame de seleção e você tem que passar, para ficar lá. Vai com Deus e tenha muito juízo!”
            Minha Mãe correu para arranjar, acho que cem cruzeiros, umas roupinhas para eu viajar, lembro que ganhei um terninho novo de brim cinza, uma mala, daquelas de fibra marrom, tirei fotografias 3 x 4 lá no Parateca (veja abaixo), a Tia Suça me deu minha Certidão de Nascimento, e no dia 22 às 6:00 h da manhã, Mamãe foi me levar na Rodoviária, depois de fazer mil recomendações: “ – Não fale com estranhos! Confie no senhor Waldir! Procure o Tio Santo! Tome cuidado com tudo, porque esse mundo está cheio de gente velhaca!”  E várias outras recomendações de toda Mãe zelosa.
            Peguei o ônibus para Uberaba. Levava cerca de 4 horas a viagem, estrada de terra, lembro-me que dentro do ônibus foi que dei conta que estava sozinho na vida! Que tinha que cuidar de mim, tinha que me virar. Eu chorei! Não sei por que, mas chorei. Acho que um pouco, já de saudade, um pouco de tristeza de deixar para trás a minha vida, parentes, amigos, principalmente a Mamãe, um pouco de medo, um pouco de enfrentar o desconhecido. Durante 4 horas eu fiquei ali no assento do ônibus, com um senhor ao meu lado, que não sabia quem era, que não conversou, que nunca soubemos quem era um quem era o outro. Não sabia muito bem o que fazer e muito menos o que iria acontecer, daqui para diante. Fiquei absorto nos meus pensamentos vagos, sem entender muito bem o que, de fato, acontecia.
            Mamãe tinha me dado o endereço do Tio Santo, em Uberaba, Rua Vital Brasil, 28 e dito para procurá-lo e pedir para ele me levar à Estação do trem. Sempre recomendava para procurar pessoas sérias para ajudar, para se informar, etc.. Por volta das 10 horas chegamos à Rodoviária de Uberaba. Desci, peguei a malinha marrom, não muito pesada, não muito leve e fui direto num homem de uniforme, que me pareceu um policial. Perguntei como devia fazer para chegar à Rua Vital Brasil, perto do Largo Santa Teresinha. Ele perguntou se eu estava sozinho e se a mala era pesada. Eu disse que estava sozinho e que conseguia carregar a mala bem. Você vai ter que subir o Morro da Onça. É muito íngreme e um pouco longe. Explicou-me até que com detalhes e lá fui eu, debaixo de um sol de fevereiro, em Uberaba, dez e meia da manhã, quem conhece, sabe do que estou falando! Parei mais uma vez no centro da cidade e perguntei se estava no caminho certo; estava, e, quando cheguei ao pé do Morro da Onça eu já me lembrei, pois em 1950 tínhamos morado lá e não havia mudado muita coisa. Subi aquele “morrão” devagar, mas cheguei lá na casa do Tio Santo logo depois das 11 horas.
            Sem ser avisada que eu iria, a tia Aurora, mulher do Tio Santo, como que assustou com a minha chegada, custou um pouco para se lembrar de mim, mas me fez entrar, me deu água, frutas e disse que teria que esperar o Tio Santo vir para o almoço. E foi tratar do almoço e fiquei sozinho na sala, pensando na vida. Ele não demorou muito.
            Durante o almoço o Tio Santo me fez um monte de perguntas, que eu não soube responder nem a metade, pois eu dependia de encontrar o Waldir para ter aquelas informações. Quis saber ainda, quanto eu tinha de dinheiro, quanto tempo ficaria lá, se ia ficar na escola mesmo ou se teria que ficar em alguma pensão e todas essas coisas. Terminado o almoço, disse que tínhamos que ir para chegar lá em tempo, pois era um pouco longe e naquela época ninguém tinha condução; andava-se a pé! Pegou minha malinha e fomos, debaixo do sol muito quente e nas ruas de terra, até à estação era realmente longe. Fomos conversando não me lembro sobre o que, mas chegamos antes de uma hora da tarde, conforme eram as instruções da Dona Aparecida. Tio Santo pegou a carta, foi até à bilheteria, conversou um pouco com o funcionário uniformizado e de boné e disse que era para irmos à sala, do chefe da estação, para preencher um papel, para participar do passe coletivo escolar e encontrar com o Waldir que era o responsável por todos nós. Ele tinha então, uns 17 anos, mas tinha autorização do Pai e do Juiz para viajar conosco.  Nosso passe era de segunda classe, que já era metade do preço, mas viajava-se em bancos de madeira. Tínhamos desconto por sermos estudantes e tinha mais descontos por sermos em mais de 10 passageiros. O trem saía, na verdade, às 15:00 h e o Tio Santo ficou lá comigo até a hora do embarque, conversou com o Waldir e pediu para me “olhar”. Entendi que o Tio Santo sabia quem era o pai dele, que tinha uma Serraria em Uberaba. Ele esperou o trem chegar, me ajudou colocar a mala no bagageiro e me disse para obedecer ao Waldir, que era uma ótima pessoa.
            Lá fui eu para minha primeira viagem de trem. No começo foi tudo novidade e não me inteirei de tudo que estava acontecendo. Acho que nem tinha idade para saber muito bem o que acontecia. Na primeira oportunidade o Waldir veio sentar perto de mim e de outro colega e nos explicou que tínhamos que ter cuidado, pois nunca se sabia quem estava no vagão conosco, de segunda classe era um pouco mais perigoso, então devíamos ficar de olho na nossa mala e nas nossas coisas. Informou-nos que teríamos que fazer duas baldeações, uma em Ribeirão Preto e outra em Tambaú. Que chegaríamos pela manhã em Guaxupé. O trem não ia mais até Muzambinho. Tinha sido desativado o ramal de Guaxupé-Muzambinho.  Mas que o caminhão da Escola iria nos pegar em Guaxupé.  Sem entender muito bem tudo o que ele disse, concordei sem fazer perguntas. Passado algum tempo, descobri que se podia andar pelo vagão e não precisava ficar sentado naquele banco de madeira, que, dizíamos, deixava-nos com a “bunda quadrada”!
            Imagina que era locomotiva a vapor, tocada a lenha e de vez em quando, nas curvas, entravam pequenas brasas que caíam sobre a roupa e queimava. Quando percebi, já estava com dois furinhos na minha calça nova. A partir da sétima ou oitava estação, percebemos que podíamos descer quando o trem parava e era fácil de saber quando partia, pois o “Chefe”, que também descia, ficava na plataforma observando e apitava uma vez e o Maquinista respondia com um apito, apitava a segunda vez e o Maquinista novamente respondia. Somente depois do segundo apito ele partia e a partida era muito lenta; custava embalar!
            Foi uma viagem muito difícil, pois não só faltava experiência, como ficava sempre pensando no pouco dinheiro, tinha que economizar, pensando no que me esperava lá na tal Escola. Quando foi chegando a noitinha, foi dando fome e o Waldir me falou que era melhor esperar chegar em Ribeirão Preto, porque era mais barato, do que comer no carro-refeitório e que teríamos mesmo que esperar mais de uma hora o outro trem. Chegamos em Ribeirão Preto já de noite e lembro que comi pão com mortadela, que era o que tinha de mais barato e tomei um guaraná. Foi tudo que comi de jantar. Tomamos o outro trem, para Tambaú e acabei dormindo, ou melhor, cochilando e acordando, até que paramos, de madrugada em Tambaú, onde fizemos a segunda baldeação, com nova espera de cerca de 1 hora, ou talvez mais. No trem, novamente cochilei e acordei, mas amanheceu e chegamos em Guaxupé.  Descemos do trem, cada um com sua malinha, alguns com duas malas e fomos a pé até à Praça principal, onde tomamos café e comemos pão com manteiga, numa padaria que o Waldir já conhecia. Tivemos que esperar até às 8 da manhã, para abrir o Posto Telefônico. O Waldir foi lá e pediu um interurbano, a cobrar, para a Escola em Muzambinho. A telefonista informou que demoraria cerca de uma hora. Não sei quanto tempo ficamos ali nos bancos da praça esperando o caminhão da Escola. Mas uma hora chegou! Pusemos tudo na carroceria e subimos todos. Partimos para a Escola, de caminhão, depois de viajar mais de 12 horas de segunda classe, aquilo parecia um suplício! Estrada esburacada, muita poeira, muito desajeitado, ficar ali sentado na beirada da carroceria, pois não tinham nem aquelas tábuas que a gente via nos caminhões de “pau-de-arara”. Hoje escrevendo, eu penso que era mesmo coisa de louco! Uma aventura impressionante para um moleque de 12 anos, que nunca tinha saído da barra da saia da Mãe.
            Chegamos direto na Escola, não vimos cidade, não vimos nada. A Escola me pareceu imensa. Tantos prédios, muito grandes, o tempo tinha fechado um pouco mas não tinha chovido. Fomos levados para um dos dormitórios. A cada um foi entregue uma roupa de cama completa, incluindo toalha de banho, e, designado um armário que ficava um em cima e outro em baixo. Fiquei com um de baixo. O Waldir veio para me falar que tínhamos que arrumar a cama e marcar bem o lugar, e teríamos que comprar um cadeado, para fechar o armário. Que era para tomar banho e irmos à cidade comer, porque a Escola ainda não estava funcionando. Falou para não desmanchar a mala, para ficar tudo guardado dentro da mala, até que comprássemos o cadeado para fechar o armário. Ele, como já era aluno, ficaria em outro dormitório. Eu teria que ficar no dormitório de visitantes em exame, pois nem sabíamos se seríamos selecionados, para ficar.
Bem, como já contei o causo do Ettore, significa que eu passei... mas como...

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

Causo 61 Minha Formação Profissional – Coleguismo



Nicanor de Freitas Filho
Aconteceu um fato, na Escola Agrotécnica de Muzambinho, em 1956, que nunca mais esqueci e que muito me valeu, para minha formação ética! Foi uma lição prática e ao vivo de ética e coleguismo. Tínhamos um colega inteligentíssimo e extremamente esforçado, chamado Ettore. Ele tinha um ligeiro problema de criação, pois, segundo viemos a saber, ele tinha 6 irmãs. Somente ele de homem, e o pior, era o penúltimo. Então ele foi criado junto com as irmãs, que o tratavam como tal. Ele não era homossexual, apenas ligeiros trejeitos efeminados. Tanto que no segundo ano em diante ele, que era inteligente, percebeu e se transformou num excelente colega. Talvez este causo que vou relatar, tenha ajudado nisso.
            Nossa professora de Matemática era a Dona Iolanda. Excelente pessoa, íntegra, na verdade uma artista, que estava ali dando aula de Matemática, pois não podia dar aula de Música, porque já tinha o Maestro Benedito, muito antigo na Escola. Ela era uma excelente docente!
Tinha na nossa classe um grupinho que assentava nas últimas filas, e era formado, principalmente por cariocas, sendo o “líder” o Célio, que por sinal era um excelente jogador de futebol, que jogava no São Cristóvão, no Rio. Numa das primeiras provas que a Dona Iolanda nos passou, e, naquele tempo as provas eram mensais, o Célio, que era bom no futebol e nem tanto em Matemática, puxou um caderno e estava “colando” uma das questões. Quando o Ettore viu o Célio colando, não titubeou e disse à Dona Iolanda:
            “ – Dona Iolanda, o Célio está colando!” Ela olhou para o Célio, e disse:
            “ – Célio, por favor, guarde o caderno”. Em seguida olhou para o Ettore e disse:
            “ – Ettore, por favor, traga-me sua prova aqui na minha mesa. Vou lhe dar zero, por ‘falta de coleguismo’. Isto que você fez – isto é, acusar um colega – é uma das piores coisas que se pode fazer, principalmente num internato. Nem bandido ‘entrega’ os colegas! Pode sair da sala e ir pensar direitinho no que você fez!”
            A classe toda ficou calada e abismada com a atitude de Dona Iolanda, que não tomou nenhuma medida contra o Célio, que terminou a prova normalmente.
            Explicando o que, de fato, houve: naquele tempo, tinha-se um “Quadro-de-Honra” em todas as escolas, onde eram indicados os primeiros alunos de cada matéria e de cada classe. O Ettore aparecia como primeiro aluno em várias matérias e na média das matérias aparecia em primeiro lugar da Escola. Ele tinha medo de perder esse lugar e por isso acusou o Célio, que estava colando.
            Nota: em 2001 – 45 anos depois do fato acima – quando fui num encontro de ex-alunos de Muzambinho, visitei a Dona Iolanda, na casa dela, onde ela nos serviu uma delícia de doce-de-leite com queijo, e eu agradeci a ela, pelo fato ocorrido em 1956 com o Ettore e disse que muito me valeu, como lição de vida. No que ela respondeu dizendo que não se lembrava e que deve ter sido muito dura, que se fosse hoje, ela nem pensaria em tomar tal atitude. Ainda complementou: “- Coitadinho do Ettore, que era um rapaz educadíssimo, deve ter se sentido muita raiva de mim!”

domingo, 9 de setembro de 2012

Causo 60 Coisas de Corintianos...



Nicanor de Freitas Filho
            Em 1974, o consultório do meu dentista ficava na Rua Gravataí, quase esquina com a Praça Roosevelt. Quando ia ao consultório, deixava meu carro num estacionamento na Rua Caio Prado, bem perto dali. Naquela época, nem tinham tantos estacionamentos, mas eram seguros. Podia-se deixar coisas dentro do carro que quando você voltava estava tudo lá.  Muitos tinham horários para fechar.
            Eu trabalhava num Grupo Financeiro, com várias empresas, entre elas uma empresa de turismo. O Gerente Carlos, muito simpático, tinha um funcionário, chamado Marquinhos, corintiano de raça, que era uma “peça”. Além de ser um excelente jogador de futsal, era desenhista e imitava assinaturas de qualquer um. A minha então era brincadeira. Um dia fizemos um teste e ele assinou um cheque meu e foi no caixa e recebeu. Naquele tempo conferia-se a assinatura antes de pagar qualquer cheque.
            Num dia do mês de agosto daquele ano, o Corinthians estava embalado e tudo fazia crer que seria Campeão Paulista, com “Don Rivelino” no comando. Todos nós corintianos estávamos certos disso. E aqueles mais fanáticos não perdiam um jogo do Coringão.
            Fui ao dentista às 17:00 h, deixei o carro no estacionamento, como de costume. Ele fechava às 19:00 h. Tive lá um problema no tratamento e ficamos até 19:30 h no consultório. Eu nem me lembrei de que o estacionamento fechava às 19:00 h. Quando cheguei lá dei com a cara na porta.      
            Não faz mal, pensei, pego um ônibus elétrico que sobe a Rua Augusta e rapidinho estarei em casa. Eu morava na Rua Haddock Lobo. Esperei um pouco e tomei um ônibus elétrico, lotado, mas lotado mesmo! Naquela época, entrava-se pela porta de trás e saia-se pela da frente. Com algum jeitinho fui chegando perto da roleta, quando pus a mão no bolso, bau-bau, cadê minha carteira. Não, não fui roubado! É que tinha deixado tudo dentro da pasta de trabalho, dentro do carro, que ficou no estacionamento.
            O ônibus lotado, custava a me mexer e o pessoal querendo que eu passasse logo na roleta, pois muitos desceriam na Av. Paulista. Vocês já estiveram em situação assim? É desconcertante! Você não sabe o que fazer. Eu já ia propor ao cobrador, ficar com minha linda caneta Cross, em pagamento da passagem, que eu poderia resgatar no dia seguinte. Pensei melhor, imaginei que não teria como resgatá-la e resolvi que ia tentar descer pela porta de trás, mesmo que fosse antes do meu ponto. Não tinha outra alternativa! Quando dei o passo para trás, pisei no pé de alguém e virei para pedir desculpas. Quem era? Adivinhem! Era o Marquinhos! Que felicidade! Ele estava indo para o Pacaembu para ver o jogo do Corinthians! Tirou-me daquela situação difícil e desconfortável em que eu estava e salvou-me pagando minha passagem! Nunca vou me esquecer disto! Êta corintiano bom!!

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Crônica 2 EM BUSCA DE LIVROS NÃO LIDOS



Nicanor de Freitas Filho
            Como vocês sabem, trabalhei no ramo Gráfico-Editorial de 1977 a 2007, com exceção de 2 anos que morei em Cuiabá e dois gerenciando uma fábrica de papel higiênico.
            Conheci e trabalhei com muita gente nesse período, cerca de 2/3 da minha vida profissional, já que o INSS reconhece que trabalhei 36 e 8 meses e ainda trabalhei mais 10 anos como autônomo, depois que me aposentei.
            Dentre as centenas de pessoas com quem fiz grandes amizades, está o meu amigo Transmontano, que me chama de Sócio, porque, por um bom tempo, conseguimos a façanha de gerenciar o mesmo departamento de exportação, sem nenhum de nós dois sermos, hierarquicamente superior ao outro. Isto mesmo! Um departamento com dois gerentes! Viajamos e participamos de muitas feiras e eventos juntos, mesmo depois que eu deixei de trabalhar na mesma empresa. Depois que sofri o infarto, em 2007, larguei tudo mesmo. Nem tive oportunidade de participar mais do mercado Gráfico-Editorial. Esta semana ele me enviou uma crônica que me levou a refletir muito e assim, resolvi publicá-la, com a devida autorização dele. Embora eu não tenha a capacidade de escrever que ele tem, eu poderia ler o que ele escreveu, como se fosse um discurso e terminar dizendo, como os antigos e bons oradores: “- Tenho dito”. 


                                     EM  BUSCA  DE  LIVROS  NÃO  LIDOS

                                                                    Papel, tinta, muita  imaginação.
                                        Hai Kay letrado:              O universo do conhecimento ilimitado.
                                                                                 Livros que passam de mão em mão.  (JCN)

        Depois de sorumbáticos meses de estranha ausência, o meu amigo Trasmontano parece ter despertado de um pesadelo de total amorfia e desencanto da vida. Na última sexta-feira, 17/08/12, ele e seu novo amigo, José Nagado, foram à Bienal do Livro conferir as últimas novidades. Queriam comprovar in loco se de fato ainda existem livros de verdade – como em passado ainda recente – produzidos com papel, cartão, tinta, cola, costura, cores, páginas que se podem tatear, marcar, abrir e fechar. Enfim, livros de ler, de encantar, de dar ou de emprestar, de imaginar, de viajar, de aprender, de sonhar. Foi
uma sábia decisão, pois, sim, ainda encontraram esses espécimes que se tornarão cada vez mais raros, e próximos candidatos à extinção. E ali ainda estavam eles: empilhados, enfileirados, protegidos, iluminados, expostos e anunciados como objetos raros em pose de promoção que parecem gritar: “Aproveitem, comprem, levem agora, são de primeira leitura; nunca foram lidos; não requerem prática, nem habilidade; só alguma escolaridade; qualquer criança se encanta; qualquer adulto se diverte; qualquer ser humano  enobrece”.

        É curioso como os livros podem servir de ponto de encontro de seres cujas origens geográficas podem vir de extremos opostos, como Oriente e Ocidente. Os dois amigos, um trasmontano brasileiro, e o outro, um brasileiro de origem japonesa, procedente de Okinawa.  Não  se conhecem  de longa data, mas já se tratam como se assim o fossem. Foram atraídos pela mesma coincidente armadilha: a da literatura.  O Nagado, engenheiro de formação e carreira, depois de aposentado, travestiu a sua racionalidade matemática em profunda análise e crítica  das teorias do Burlesco, e das origens do humor, sem ter medo de escarafunchar nas obras de filósofos como Barthes, Bergson, Wittgenstein, Lichtemberg, Nietzsche, e outros ícones da psicologia e psiquiatria, como Freud e Jung. Os ensaios de sua autoria, postados em seu blog, têm a profundidade e a seriedade do intelectual seguro do que escreve. Mas a sua racionalidade matemática não consegue esconder a sua sensibilidade para a crônica, e a sua maestria em Hai Kays, poemetos de origem japonesa, - similares ao que está abaixo do título desta crônica -  cuja arte tenta ensinar ao meu amigo,  com paciência oriental. A sua sensibilidade se estende à pintura e à música. Sobre o Trasmontano, já se lhe conhecem as suas principais facetas, através das muitas crônicas em que tem sido protagonista.

        O passeio pelas alamedas de mansões geminadas, cujos moradores e senhores eram os livros, trouxe-lhes uma excitação quase infantil, e a impaciência de adolescentes  a ambos, na vontade de, num futuro próximo, terem a sua própria literatura também exposta em livros de carne e osso (oops, de papel e tinta). Não, eles não esperam ganhar um  Nobel no futuro com os textos que escreveram - e ainda escreverão -  nem tampouco alcançar tops de milhões de exemplares vendidos. Eles apenas sonham em fazer parte dos bilhões de partículas literárias espalhadas pelo universo do conhecimento; apor um certificado que ateste o seu DNA nalguma ideia ou registro de suas próprias emoções,
criações, ilusões, sonhos, inspirações, experiências de vida. Afinal, eles já tiveram filhos, já plantaram uma árvore e, embora bem poucos saibam, já escreveram, cada um, seu livro. Só falta editá-los, dar-lhes asas, e deixar que voem ao encontro de todos aqueles que não desprezam a expressão dos átomos de um novo pensamento, um novo olhar sobre a vida, o universo, a natureza, e a humanidade. Que ambos realizem seus sonhos.

        O entusiasmo e esperanças, compartidos com seu amigo Nagado, disfarçaram o real estado de espírito do meu amigo Trasmontano. Na verdade, o que ele sentia, naquele momento, era uma profunda nostalgia por rever, mentalmente, naquele universo literário que os envolvia, um flash-back de seus últimos 40 anos, 20 dos quais vividos em outros eventos tão importantes, ou mais que aquele, espalhados pelo mundo. Nesse momento, era um simples visitante, e não mais um dos vários protagonistas das muitas Feiras Internacionais do Livro de que participara desde 1980, da sua primeira no Salão da Bienal no Ibirapuera, à última de 2000,  em Guadalajara. Nesse período de 20 anos, além das Bienais alternadas de São Paulo e Rio, participava de outras 9 a 12 anuais Feiras Internacionais, num total em torno de 200, sediadas por Buenos Aires, Bogotá, Santiago, Guadalajara, Lisboa, Bologna e Frankfurt; alternadas como Madrid e Barcelona, ou como NY, Miami, Washington, New Orleans, San Francisco, Los Angeles, San Diego, Anaheim, e Las Vegas; outras eventuais como Londres, Tokyo, Lima, Quito, Caracas, San Juan P. Rico, Asunción e Montevidéu. Um destaque especial para a de Frankfurt, a Meca de todos os editores, escritores e agentes literários do mundo. Qualquer ser humano que viva nessa tríade, tem que estar lá em pelo menos uma edição. O meu amigo participou dela em 16 anos consecutivos. 

        Sem nunca haver feito literatura, desde quando foi fundador e redator do Roosevelt News, já mencionado em textos anteriores, o Trasmontano crê, sem falta modéstia, ter dado o seu quinhão de contribuição à literatura brasileira, ao difundir, nessas Feiras – com o respaldo da Melhoramentos -  o trabalho de autores nacionais como Ziraldo, Ruth Rocha, Maurício de Sousa, Ciça Fitipaldi, Rogério Borges, Rogério de Andrade, José Mauro de Vasconcelos - e outros a quem a sua já deficiente memória pede desculpas pelo esquecimento – ao fazer com que todos se projetassem internacionalmente, e chegassem a mercados nunca imaginados, no contexto de suas épocas, abrangendo  quase todos os países da  América Latina, USA, Canadá, Alemanha, Inglaterra, Itália, Espanha, Portugal, Dinamarca, França, Índia e Japão, além de outros de menor expressão mercadológica. Mas, apesar disso, sempre lhe ficou uma desconfortável sensação de que o seu trabalho foi mais reconhecido no exterior do que no país.

        Os dois amigos terminaram o tour pela Feira, como simples e anônimos visitantes, já prestes a voltar para suas casas. Enquanto o Nagado o espera já fora do recinto, o Trasmontano não resiste a um último olhar sobre as coloridas casas de livros. Lembrou-se de que, em todo o percurso, havia encontrado apenas dois de seus mais antigos companheiros, ambos originários da sua querida Melhoramentos. Sentiu-se como num teatro a que fosse assistir à mesma peça repetidas vezes, na qual os atores se renovavam gradativamente, ano após ano, mas ele conhecia a todos, e todos o conheciam. Passados alguns anos ausente, ele volta ao mesmo teatro, mesma peça mesmo cenário, mas já não reconhece mais ninguém no palco, assim como ninguém o reconhece. O tempo havia sido inexorável para todos. A idade foi substituindo os antigos protagonistas, ou talvez fosse apenas um momento de descanso à espera da próxima sessão. Mas a idade também o havia transformado, pois o seu corpo cansado pela caminhada; a sua mente aturdida de saudade; os seus olhos com disfarçadas lágrimas; e a multidão de  escolares a empurrá-lo; tudo conspirava para deixar sua alma em prantos. Fora, seu amigo já o esperava. Preferiu não falar mais de livros; engatou uma conversa, totalmente fora de contexto,  sobre Violeta Parra e Mercedes Sosa. Assim como o Céu, os livros também poderão esperar pelo próximo passo de ambos.

JCN – AGO – 2012

domingo, 2 de setembro de 2012

Causo 59 Minha formação profissional - III



Nicanor de Freitas Filho
Depois que terminei o Grupo Escolar, ou seja, o curso primário, daquela época eu teria que fazer o Curso de Admissão, que era de 1 ano e preparava para entrada no Ginásio. Eu não fiz o Curso de Admissão. Então tinha que trabalhar. Desta vez fui para a Oficina do Padrinho. Ele tinha uma oficina, em sociedade com o João, que namorava nossa vizinha Arlete. A oficina era mecânica elétrica. Na verdade eles eram eletricistas, mas o principal deles era o enrolamento de motores, geradores, induzidos, transformadores elétricos, inclusive os de rua, aqueles grandões que a gente vê nos postes.
Quando fui trabalhar tinham os dois patrões, o Padrinho e o João e três empregados: o Tiôdo, o Vadinho e o Ladico. O mais antigo era o Tiôdo,  especializado em enrolar induzido para geradores de caminhão. O Vadinho, era um pouco mais novo, mas estava no mesmo nível profissional e o Ladico estava aprendendo. Eu aprendi, primeiro a consertar ferro elétrico – trocar a resistência – depois enceradeira, e depois chuveiro elétrico, também trocar resistência. Limpava a oficina e depois tentava aprender a enrolar induzido. O Padrinho, quando saía para fazer serviços fora, me levava para ajudar. Dois serviços feitos fora que não esqueço foram: o primeiro a instalação do aparelho de Raios-X, no consultório do Dr. Armando. Era muito importante, ninguém em Araxá sabia como instalar, era muito difícil, porque tinha que ter cabos muito especiais, que o pai do Padrinho ajudou na interpretações dos manuais, e, este Raios-X era de extrema importância, porque o Dr. Armando cuidava dos jogadores do Najá Futebol Clube.  O Dr. Armando tinha três filhas muito bonitas. Ficamos uns três dias na casa do Dr. Armando. E o segundo serviço feito fora que não esqueço, foi que o ajudei a trocar toda a fiação da casa do Sr. Artur, que ficava lá perto do Estádio, porque no primeiro dia de trabalho lá, a escada não chegava até a altura do alçapão, faltava assim uns 60 cm. Então tinha que segurar nas beiradas do alçapão para acabar de subir, apoiando os cotovelos. Eu fiquei com medo e titubeei, o Padrinho achou que eu cair e me segurou do jeito que deu, pelos cabelos, até que reequilibrei e ele me ajudou a acabar de subir. Quando foi mais tarde, aí por volta das 3 horas da tarde, a esposa do Sr. Artur, que era meio prima do Padrinho (o pai do Sr. Artur, o Sr. Ernesto, era irmão do Pai do Padrinho), nos trouxe uma “vitamina” de banana com mamão. Foi a primeira vez na vida que tomei aquela bebida cremosa, mas tão gostosa. Que delícia! Eram pouquíssimas as pessoas que tinham liquidificador...
Aprendi muito com o Padrinho. Foi muito importante para mim, entender um punhado de coisas, como por exemplo, eu era afilhado dele, mas eu limpava a oficina, porque eu não sabia enrolar induzidos. Não adiantava ser afilhado, tinha que conhecer o trabalho. Eu ajudava muito o Padrinho. Ele enrolava motores elétricos quase sempre. Eu preparava as bobinas para ele. Era assim, chegava um motor para enrolar – vinha queimado – tinha que desenrolar. Ao desenrolar, contava-se quantas voltas tinham as bobinas e os pontos de ligamento das bobinas entre si. Eu dizia a ele que pegava seu caderno de notas e anotava tudo. Aí ele pegava o calibre – uma ferramenta de medir com precisão – e anotava a bitola do fio da bobina e o nº da forma. Contava quantos frisos a bobina pegava de um lado a outro no núcleo da carcaça do motor.  Então eu limpava o núcleo e era difícil tirar as fibras queimadas de dentro dos frisos, colocava as fibras novas com uma fita amarela que eram colocadas nas pontas – que não me lembro do nome desse material – lixava o coletor do induzido e começava a enrolar as bobinas, contando certinho as voltas. O Padrinho enrolava os motores, depois tinha que envernizar, secar e testar.
            Ele enrolava de tudo. Lembro que o mais difícil eram os transformadores de rua, cujas bobinas são enroladas, por camadas, separadas por fibra e tem que ser bem juntinhas e bem apertadas. Lembro que muitas vezes eu tocava a manivela, onde ficavam as formas das bobinas, e o Padrinho, com um pedaço de couro nas mãos, para não machucar, ia “dirigindo” o fio no lugar certinho.
            Uma vez chegou na Oficina um fazendeiro muito conhecido em Araxá e perguntou para o Padrinho, quanto custaria enrolar o Dínamo da Fazenda dele. Ele perguntou se era aquele que já enrolara há alguns anos atrás. Ele disse que sim, o Tarcísio foi até ao caderno de anotações, viu a bitola do fio, calculou a quantidade, tempo etc. e disse lá um valor. O fazendeiro disse que ele estava louco, pois tinha quem enrolasse pela metade do preço lá em Uberaba. O Padrinho não discutiu, deixou-o ir embora. Note que um gerador de fazenda tem que ser enrolado rápido, porque a fazenda fica sem luz enquanto se enrola o gerador. Passado umas duas semanas ele voltou e perguntou se não dava para baratear um pouco. Ele explicou que não dava, mas perguntou pelo “enrolador” de Uberaba. Ele confessou que o profissional enrolou mas não funcionou direito! Como não funcionou direito? Ele despistou e disse que o “cara” ia enrolar de novo, mas que ele era demorado. Passadas mais uns dias volta o Fazendeiro com o Dínamo e pede, pelo amor de Deus, para ele enrolar, porque estava fazendo muita falta na fazenda.  Ao desmontá-lo, contei as voltas, olhei a forma, limpei tudo e passei as informações. Ele pegou o calibre e disse:
            “ – É claro que não podia dar certo, pois o fio deve ser bitola 16 ele enrolou com bitola 20, em vez de 40 voltas ele estava dando 50 para compensar. Não ia rodar nunca.”
            “ – Mas como você sabe que está errado?”
            “ – Porque para anotar e guardar tudo e saber das coisas certas, inclusive com fazer, custa mais caro mesmo!”
(Nota: os números e bitolas eu inventei, porque não lembro quais eram).
Ele tinha tudo anotado, da primeira vez que enrolou o Dínamo do Fulano.
Outra experiência profissional que aprendi rápido: registrar tudo! Até hoje tenho o hábito de anotar tudo em cadernos e agendas, mesmo depois que me aposentei. E guardo tudo...